Estamos passando pelo centenário da maior divisão da
história do movimento socialista. Significativamente, foi provocada pelo
acontecimento que, por assim dizer, abriu o século XX, a Primeira Guerra Mundial.
A encruzilhada estratégica de 1914 ainda é o nosso ponto de partida para a luta
pelo comunismo. Para entender melhor a dimensão do que aconteceu, vamos
explicar rapidamente o contexto.
Catástrofe imperialista
A Grande Guerra foi um acontecimento que estava fora da
compreensão de todos naquele momento. Não é que simplesmente as pessoas
imaginavam que seria uma guerra curta, como tantas vezes se fala nas aulas de
história, mesmo isso sendo verdade. Mas a grande novidade é que era uma guerra
que refletia o estágio alcançado pelo capitalismo.
Em primeiro lugar, uma guerra altamente industrializada. A
tal ponto que hoje sabemos que quem ganhou foram as potências com maior
capacidade industrial. Até o século XIX, ainda existia uma margem para a autonomia
das tropas e para alternativas estratégicas mais flexíveis. Mas os tanques de
guerra, o arame farpado, as armas químicas, todos esses novos recursos exigiam
uma mobilização econômica e formas de combate muito diferentes.
Um dos primeiros resultados foi a guerra de trincheiras, em
que as batalhas duravam meses praticamente no mesmo luar, até que um dos lados
não tivesse mais recursos para resistir. A violência, também em escala
industrial, não tinha precedentes. Em quatro anos, morreram mais de nove milhões
de soldados. Infelizmente, a Segunda Guerra Mundial bateu todos esses recordes.
Mas o conteúdo da guerra também foi inédito. Antes, era
impossível existir uma guerra mundial. Todo o mundo foi redividido entre as
potências imperialistas. Era um novo período histórico, uma fase superior do
capitalismo, em que a economia tinha ultrapassado os limites nacionais. O
Japão, a Alemanha e a Itália, que se industrializaram mais tarde, já no final
do século XIX, tiveram que disputar mercados através da guerra com outras
potências.
Nessa guerra interimperialista, os antigos impérios foram
destruídos. Acabou a Áustria-Hungria, a Alemanha se tornou uma república e o
Império Otomano se tornou a Turquia atual. As várias nacionalidades oprimidas
da Europa Central e do Leste puderam se autodeterminar. Ao mesmo tempo, na
Rússia começou a onda de revoluções socialistas, que foi o fenômeno mai s
importante do século XX.
Não cabe aqui contar como se desenrolou a guerra no campo de
batalha, o que faremos em outro texto. O nosso foco é a divisão que a guerra
causou no movimento socialista.
A Segunda Internacional
A Primeira Guerra foi o fim de um longo período de paz e
prosperidade na Europa, a Belle Époque. Além do grande desenvolvimento
científico e econômico, houve um florescimento cultural muito grande, com a
criação do cinema, da psicanálise, o início da arte moderna, grandes nomes da
literatura. Mas, por trás de tudo isso, estava o imperialismo, promovendo
genocídios na África, massacrando revoltas na Índia, desmembrando a China.
Durante esse período, foi formada a Segunda Internacional,
que conquistou reivindicações dos trabalhadores como a redução da jornada de
trabalho, as férias, a proibição do trabalho infantil e muitas outras, através
das lutas sindicais e da atividade parlamentar dos partidos socialistas de
massa.
Entre esses partidos, o mais importante, pelo tamanho
(chegou a um milhão de filiados um pouco antes da guerra) e pela sua ligação
com os maiores intelectuais socialistas da época, foi o SPD (Partido
Socialdemocrata Alemão). Como todos os outros partidos da Internacional, ele
foi se adaptando pouco a pouco à rotina da militância legal e se
burocratizando.
Já no final do século XIX começa a se definir uma ala
direita no movimento socialista, primeiro na França, com a participação de
dirigentes do Partido Socialista no governo Millerand, em 1899, e depois na
Alemanha, quando Eduard Bernstein começa a publicar a sua série Problemas do Socialismo, defendendo uma
revisão do marxismo.
Pouco depois, surgem
as correntes da esquerda, que começam a perceber que a direção da internacional
(o “centro”, em que a pessoa de maior destaque era Kautsky, considerado na
época o maior marxista vivo) não toma uma atitude enérgica contra a ala direita
e, em vez disso, concilia com ela. A primeira expoente dessa ala direita foi a
Rosa Luxemburgo, dentro do SPD. A partir da revolução de 1905 na Rússia, quando
foram criados os sovietes, o conflito entre as três alas passa a acontecer em
torno da estratégia para a tomada do poder.
Os dilemas estratégicos
É impossível formular uma estratégia sem analisar a
estrutura da sociedade que se quer transformar. As três alas que foram
mencionadas se baseavam em duas análises diferentes sobre a evolução histórica
do capitalismo. Ao mesmo tempo, existiam diferenças táticas entre elas, que
levaram, como vamos ver, tanto o campo a favor da guerra como o antiguerra a
terem representantes de todas as alas.
A perspectiva do Marx e do Engels, desde a época do Manifesto
Comunista, era de que a extensão do capitalismo iria levar a crises cada vez
maiores, ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora cresceria e se
concentraria mais e mais nas grandes indústrias. Um dia, esses dois fatores iam
se cruzar, e um proletariado altamente organizado seria levado por uma crise
sem precedentes a tomar o poder e começar a transição para o socialismo.
Logicamente, essas perspectivas se aplicavam principalmente aos países
capitalistas mais desenvolvidos, os da Europa.
Essa era a perspectiva tanto do centro como da esquerda da
Segunda Internacional. Inclusive Kautsky aplicou criativamente o marxismo para
o caso das colônias, na sua obra Socialismo
e Política Colonial, enquanto Lênin formulou a sua teoria da ditadura
democrática do campesinato e proletariado para o caso da Rússia, em Duas Táticas da Socialdemocracia na
Revolução Democrática. As duas teorias previam uma combinação de revoluções
socialistas na Europa com revoluções democráticas e agrárias nos países
atrasados e colônias.
A diferença entre o centro e a esquerda, então, não estava nas
perspectivas, e sim em como chegar ao poder. Nessa diferença está toda a
adaptação do centro à direita.
Porque a grande novidade do revisionismo de Bernstein era a
ideia de que o desenvolvimento do capitalismo estava desmentindo ou colocando
em dúvida as previsões marxistas sobre a piora das crises e a polarização cada
vez maior entre burguesia e proletariado. Segundo Bernstein, a organização dos
trabalhadores em cooperativas e sindicatos estava neutralizando as piores
características do capitalismo, e abrindo possibilidades maiores para uma
transição pacífica para o socialismo. As reformas seriam o caminho para a
transformação do sistema, e elas seriam realizadas por um Estado democrático.
Na prática, a estratégia do centro era a mesma da direita. Essa
estratégia era chamada de “guerra de atrito”, e também se baseava no
fortalecimento dos sindicatos e cooperativas. A diferença estava só no
discurso: enquanto os revisionistas falavam abertamente que o objetivo era ter
mais influência sindical, cooperativa e eleitoral para mudar o Estado por
dentro, o centro dizia que todo o esforço de organização era uma lenta
preparação para as futuras crises e que, nessas crises, a estratégia do atrito
seria trocada pela revolução.
Como marxistas que somos, devemos
sempre ter em mente que é o ser social que determina a consciência. Mais do que
a expressão de “ideias erradas”, a política do centro era uma adaptação a uma
situação eu já existia de fato: a burocratização e o conservadorismo da
socialdemocracia, tanto nos partidos, como nos sindicatos e cooperativas.
Contra essa adaptação, a partir da revolução russa de 1905,
Rosa encontrou a saída nas greves de massas. As greves colocavam em movimentos
as massas desorganizadas, e por isso serviam para neutralizar a burocracia dos
partidos e sindicatos, e recuperar o espírito revolucionário dos trabalhadores.
Trotsky, o dirigente do primeiro soviete, e Lênin também
tiraram da revolução de 1905 a conclusão de que os sovietes eram a forma
organizativa do futuro governo revolucionário. A ideia das greves de massa como
alternativa, que foi popularizada pelo livreto Greve de Massas, Partido e Sindicatos, da Rosa, passou a ser
majoritária na esquerda da Segunda Internacional.
(continua...)
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