O companheiro David Rehem, da Bahia, nos mandou esse texto, com a seguinte mensagem: "Um texto meu, com algumas preocupações sobre o que chamamos de educação... Aberto para discussões".
Nós reproduzimos aqui, não só pelo tema fundamental da valorização da educação (ainda mais num período de greve das universidades), mas também porque a concepção de educação faz parte da disputa pela hegemonia na sociedade, entre a classe trabalhadora (incluindo as suas organizações) e a burguesia. Se uma nova educação, não é possível criar o Homem Novo nem uma sociedade socialista.
Educação, verdade e
Revolução
David Rehem
Escrevo esse texto a partir de
experiências recentes enquanto educador, tanto em sala de aula quanto técnico.
São inúmeros os problemas vividos
hoje na educação do nosso país que vão desde questões profissionais a
estruturais. Neste ano profissionais da educação de escolas da educação básica
e do ensino superior público e privado passaram por greves que pautaram desde
questões salariais até estrutura física e condições de trabalho. Os problemas
não param por aí, existem ainda questões que estão ligadas ao investimento
público, violência no espaço escolar, currículo e mais uma interminável lista.
Soluções aparecem a todo momento.
Dentre essas propostas de solução a que hoje tem maior visibilidade e pauta as
discussões sobre educação em nosso país é o movimento “Educação para Todos”,
criado em 2006 e que possui cinco metas a serem alcançadas até 2022, sendo
elas:
Meta 1: Toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola
Meta 2: Toda criança plenamente alfabetizada até os 8
anos
Meta 3: Todo aluno com aprendizado adequado à sua série
Meta 4: Todo jovem com o Ensino Médio concluído até os 19
anos
Meta 5: Investimento em Educação ampliado e bem gerido
Quem encabeça a lista de
apoiadores deste projeto são, não por acaso, multinacionais de diversas áreas e
bancos privados[1],
incluindo, aí, duas dos mais influentes e conservadores meios de comunicação: a
Globo e a Editora Abril. Na sua direção estão membros representantes dessas
diversas empresas e tem sua atuação estruturada em três pilares: geração
de conhecimento técnico, mobilização e comunicação, e articulação
institucional.
Num
primeiro olhar é uma atitude nobre e despretensiosa, feita por bons
empresários, preocupados com o futuro do país, mas basta acompanhar as ações e
programas implementados para ver que não é bem por aí.
Em
primeiro lugar as ações estão todas voltadas para a formação técnica, ou seja,
educação voltada para suprimento da mão de obra desses empresários. No ano
passado o jornal Hoje, da Rede Globo, apresentou uma série de documentários
sobre a educação em nosso país, mostrando diversos problemas, sempre de
comentários de profissionais da área. Mas, não eram “qualquer” profissionais.
Em sua maioria estavam ligados ao projetos desenvolvidos pelo “Educação para
Todos” . Em uma dessas entrevistas a pedagoga (que não me recordo o nome)
afirmou que a necessidade de uma reforma curricular partia da necessidade de se
contextualizar a demanda dos estudantes da escola. Até aí, nada demais. Mas,
para ela, essa contextualização deveria prever quais as “oportunidades
profissionais” daquele público para que se construísse um currículo técnico ou
humanista. Não está explícito, mas o que ela sugeria é que para um filho de
pedreiro, o ensino técnico; para de um “dotô”, o ensino reflexivo. Para um o
enquadramento social e sua perpetuação, para o outro a liberdade de escolha.
Em
segundo lugar, a meta 5, que se refere à investimento em Educação, não está ali
por acaso. Não é de agora que a iniciativa privada visa mercantilizar nossa
educação, tornando-a como mais um produto de consumo e não como uma necessidade
estratégica para garantia da formação humana de cada um. Cabe um breve
histórico. Não é a toa que a hoje chamada educação básica se tornou universal e
obrigatória no mesmo período dos primeiros acordos entre o Ministério da
Educação e United States
Agency for International Development (USAID)[2],
conhecido como acordo MEC-USAID;
também “coincide” com o momento em que se inicia o sucateamento da educação
pública (que agora receberá os filhos da classe trabalhadora) e a ascensão do
ensino privado, antes conhecido como pagou
passou.
Agora se vende outro engodo. Os tentáculos da iniciativa privada não mais
se contentam com a fatia que lhe foi destinada na década de 1970, agora ela
tenta avançar no ensino público, propondo e formatando-o segundo seus
interesses, fruto do assentamento da hegemonia burguesa pós-Guerra Fria. A
falta de financiamento na educação pública em todos os níveis “confunde” a
autonomia universitária com autonomia de estabelecimento de PPP’s (Parcerias
Público-Privadas), dando à iniciativa privada o conhecimento gerado em nossas
universidades e que, como públicas, deveria ter como fim o interesse público.
Some-se a isso a expansão das chamadas UNIESQUINAS por todo o país, sob
investimento público que têm servido apenas para aumentar o índice de pessoas
com nível superior junto aos estudos sobre o progresso [sic] da educação no
país.
Mas
tais atitudes não me espantam. O que me espanta é como educadores compram
(literalmente) essa idéia, sem refletir o que está por trás dela. É como se
essa receita mágica fosse resolver o problema do estímulo ao estudante em ficar
em sala de aula e aprender algo. Dados poderão até ser apresentados comprovando
isso, mas não significa que essa é uma “tendência natural” das coisas, já que
muitas vezes somos induzidos a acreditar que basta ter uma formação técnica
para garantirmos que será solucionado, dessa forma, o problema das
desigualdades sociais.[3]
Ledo engano...
Soma-se
às discussões de uma formação tecnicista a defesa de uma tal “cultura da paz”. Essa
cultura da paz defende a necessidade de pensarmos formas de conviver
harmonicamente em nossa sociedade, buscando as soluções para os problemas
dentro das escolas e discutindo cidadania. Vamos por partes...
Comecemos
pelo fim. Cidadania... Em primeiro lugar, o que é a noção de cidadania em uma
sociedade capitalista, pautada pela exarcerbação do individualismo, senão a
mentira de que é possível se viver de forma equânime em uma sociedade pautada
pela diferença de classe? Mas essa discussão é permeada e vista
esperançosamente como a solução dos nossos problemas de “civilidade” e acesso e
garantia a nossos direitos. Quando, enquanto educadores, defendemos tal
concepção estamos reproduzindo o discurso mentiroso de que essa é a nossa única
possibilidade de ver o mundo e de se relacionar com ele. É dizer que não
podemos pensar outras formas de garantir a cidadania plena, a não ser
escamoteando nossas diferenças de classe e que é possível viver em uma
sociedade em que o acesso aos direitos sejam iguais para trabalhadores e
burguesia/classe dominante.
Essa
defesa do discurso da harmonia social está ligada direitamente a uma
perpetuação da idéia defendida pelos estadunidenses (a partir dos
historiadores Fukuyama e Huntington) quando do fim da União da Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) e a queda do muro de Berlim, de que a História
teria chegado ao fim e que o nosso ápice de forma de organização social era o
capitalismo e não há como ser diferente. Tornou-se vergonhoso, perigoso e, na
maioria das vezes, loucura falar de Revolução, de alternativas ao capitalismo, de
luta de classes... Foi uma mentira dita muitas vezes que se tornou verdade, no
bom estilo Goebbels, na elaboração de sua propaganda nazista. E nós,
educadores, profissionais “reflexivos” de nosso passado, presente e futuro
simplesmente dissemos amém ao que foi plantado como verdade universal e
absoluta.
Tudo passou a ser apenas
problemas de desrespeito e intolerância, mas de fácil solução pela cultura da
paz. Falar em luta de classes era (e é encarado dessa forma) defasado e trazia
a palavra LUTA que teria um sentido negativo, já que seria possível superar
essas diferenças pela paz, pelo diálogo... Depois de vinte anos é mais do que
visível que desrespeito e intolerância são inerentes a uma forma de organização
social baseada na exploração do ser humano, do individualismo, do consumismo,
do ter e não do ser. Mais incrível é que teóricos que defendiam a educação como
instrumento de libertação e reflexão, como Paulo Freire, Vigotsky e Gramsci,
são hoje utilizados como validadores dessa falsa harmonia.
O resultado são materiais e
palestras que retrocedem a soluções simplistas. Textos muito bonitos que falam
da igualdade, que dizem apontar para solução de problemas, mas não a partir da
libertação problematizadora-reflexiva, do debate de possibilidades de verdades,
de projetos políticos diferenciados, universais e específicos, mas da
re-produção de mentiras de que é possível viver sem conflitos em uma sociedade
baseada em conflitos. A
metodologia parece resgatar a mesma lógica da educação tradicional de formatar,
ditar o que se deve aprender, escamoteado em propostas de atividades que
parecem reflexivas, mas que traçam um caminho visivelmente definido de qual é o
objetivo final: docilização de corpos e mentes.
O problema é quando há o
despertar para essas mentiras... O caminho mais comum, infelizmente, não é o da
tomada de consciência da necessidade de reflexão-transformação, a partir de uma
perspectiva de ruptura revolucionária; infelizmente o caminho normalmente
tomado é o da violência contra outras vítimas, professores agredindo estudantes
e vice-versa; a ilusão da cidadania, onde o culpado do não exercício da mesma
não é visto como um problema sistêmico, mas sim como uma boa vontade
individualizada do trabalhador, do setor público ou privado
Não a educação como bem de
consumo! Não a educação como bem de consumo! Não a educação como bem de
consumo!
Termino meu texto, repetindo essa
frase, para que ao menos uma vez uma verdade dita milhares de vezes possa se
tornar... verdade.
[1] Para ver
a lista de apoiadores, acessar : http://www.todospelaeducacao.org.br/institucional/quem-esta-conosco/
[2] Agência
para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos – tradução livre do
autor.
[3] É um
recurso bastante comum a utilização de dados como demonstradores da verdade,
como se não fossem passíveis de interpretação ou análises.
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