por Paulo Araújo
Todo mundo viu o filme V de Vingança? Na última cena, o regime fascista é derrubado na Inglaterra por uma multidão de pessoas com a máscara do herói, reunidas na frente do Parlamento. O que isso tem a ver com a discussão proposta no título do artigo? É que é dessa maneira que a maior parte da esquerda concebe uma revolução, ainda mais depois do fim da URSS, quando a burguesia fez o seu discurso de “fim do comunismo”, negando até mesmo a existência da classe operária e de algo como uma “sociedade de classes”.
A maioria dos militantes deixou de entrar em partidos, ou seja, organizações com uma estratégia. Nós do Coletivo Lenin não temos poderes telepáticos, mas pela prática e pelo discurso da maioria dos militantes da esquerda, existe uma ideia sobre a revolução que pode ser resumida mais ou menos assim: “Hoje nós lutamos por reivindicações mínimas e imediatas. Um dia, o povo todo vai entrar nessas lutas – se formos mais ‘populares’ e evitarmos levantar muito o nível de nosso discurso – e então, quando a maioria estiver na luta, poderemos fazer uma revolução”.
A ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, falaram Marx e Engels. E, mesmo nesse discurso sobre a revolução, podemos ver todos os traços da ideologia burguesa. Mas qual ideologia burguesa? Ora, a da cidadania! A constituição dos EUA começa com a frase “Nós, o povo”. O movimento sem-teto carioca usa a palavra de ordem “Se morar é um direito, ocupar é um dever”. Os deputados do PSOL falam em “governar para a maioria”. Os anarquistas chamam a não votar para não “legitimar” as eleições e buscam montar grupos “horizontais”, sem líderes.
Em todos esses casos está presente uma concepção legalista da sociedade, em que ela deveria corresponder aos direitos dos indivíduos. Assim, é igualzinho ao final do V de Vingança: a revolução é uma reunião da maioria, uma espécie de eleição nas ruas, para estabelecer a sua vontade (“Façamos das pedras nossas cédulas de votação” já diziam os jovens no maio francês de 68).
Essa noção destrói qualquer possibilidade de entender como funciona uma revolução de verdade, quais são os setores que participam dela e como participam, qual é a sua estratégia, como ela se organiza no plano político-militar, etc. Nada disso é importante para quem defende essa concepção cidadã, porque para eles a revolução é alguma coisa fora da realidade, ou pelo menos fora do seu horizonte. Por isso, na prática, a concepção da revolução como um movimento de cidadãos é reformista. É uma concepção de revolução que pode acontecer por dentro do Estado, de maneira natural (sem um partido para organizar) e necessariamente de maneira pacífica.
Essa visão espontaneísta da revolução se resume a dizer que as pessoas têm interesses que são negados no capitalismo. E que, se lutarem por esses interesses, vão destruir o capitalismo. Em primeiro lugar, existe a ideia de que as lutas podem se generalizar por si mesmas, sem que exista uma organização para isso. Ou seja, é a negação da necessidade um instrumento consciente para levar as lutas até a destruição do Estado, e que, pra isso, seja preciso mostrar às massas a necessidade de combater o sistema. Em outras palavras, a negação da estratégia. Sobre esse ponto, já falamos com calma no nosso artigo de 2007, O que é uma organização revolucionária e porque militar em uma?, disponível em nosso site.
A conclusão dessa concepção é que seria necessário manter o movimento no nível das demandas mínimas, porque só assim não “afastaria o povo”. Portanto, é a negação também do programa, que é outro aspecto da negação do partido. Mas isso não é o assunto sobre o qual realmente queremos falar aqui. Existe uma ilusão ainda mais séria no seio da esquerda reformista.
Povo ou classe?
Na verdade, toda a concepção da revolução como um movimento de cidadãos está baseada na negação da existência da classe operária como um setor distinto da sociedade. Poderíamos resumir dizendo que a ideia de revolução como movimento de cidadãos é a conclusão lógica de imaginar uma revolução sem imaginar uma sociedade dividida em classes. É o que tentaremos provar a seguir.
A negação da estratégia é um resultado de imaginar que não existem diferenças entre todas as pessoas que são oprimidas. Assim, a maioria dos movimentos que veiculam essa ideia fala de “povo” em geral e abstratamente. Isso é uma diferença marcante com a tradição da esquerda de antes do fim da URSS. Antes, se falava em classe operária, classe trabalhadora, aliança operária e camponesa, etc. Mas a ofensiva anticomunista que acompanhou a destruição da União Soviética e a restauração do capitalismo foi tão séria que abalou o fundamento mais básico da estratégia dos ativistas do movimento operário. Que fundamento é esse? É a ideia de que existe uma classe operária!
Hoje, a maioria das organizações de esquerda, quando fala em nome do “povo”, está conscientemente negando que haja alguma coisa no mundo real como uma classe separada das outras (e dos outros setores do povo), com traços diferentes. Isso é importante porque, dentro do marxismo, sempre se considerou que a condição estrutural da classe operária (localização na produção, concentração em um mesmo espaço físico, peso na sociedade, métodos de luta) é o que lhe dá as condições para construir o socialismo.
É importante citar (sem nos estendermos longamente no tema) que as obras de Ricardo Antunes, sociólogo e membro da direção do PSOL (Os Sentidos do Trabalho, Adeus ao Trabalho?, etc.) são apresentadas na esquerda como um projeto para recuperar a discussão de classe, a partir de uma análise das mudanças nas relações de trabalho no capitalismo atual. Mas, na verdade, Ricardo Antunes conclui a sua pesquisa criando o conceito de “classe que vive do trabalho”, que inclui não só os assalariados na produção e circulação do capital, como os funcionários públicos e até mesmo os trabalhadores por conta própria. Ou seja, mesmo com a intenção de fazer o contrário, Ricardo Antunes também dilui a classe trabalhadora (que existe dentro das relações capitalistas de produção) dentro de toda a população que vive do próprio trabalho, com o argumento de que todos esses setores vivem em condições sociais muito parecidas. Um debate contra esse conceito de Ricardo Antunes é fundamental para uma teoria marxista do capitalismo contemporâneo.
Pode ser real uma classe que não sabe que é classe?
Nós já nos posicionamos sobre esse assunto no nosso artigo Quem é a classe trabalhadora?, onde combatemos tanto a concepção de diluir a classe operária no “povo” quanto a concepção stalinista/obreirista de dizer que a classe trabalhadora é formada somente por trabalhadores manuais da indústria.
O grande argumento sobre a inexistência da classe operária é o seguinte: “As condições mudaram desde o tempo de Marx. Não existe mais a polarização da sociedade que havia no século XIX, existe agora uma 'classe média' que é grande parte da sociedade, os conflitos sociais são vividos indiferentemente pela 'antiga classe operária' e pelos outros setores (comerciantes, desempregados). Portanto, não há mais sentido em usar essas categorias ultrapassadas”. (Reparem que não estamos citando ninguém, apenas pegamos uma ideia que está “flutuando” no senso comum).
Existe também um argumento derivado dessa concepção, que corresponde à realidade – nem mesmo os operários de macacão se vêem como “classe operária”, e sim como “povo”. Como então dizer que existe alguma diferença importante? A “classe operária” não seria, então, uma invenção da cabeça de Marx, e os comunistas tentam enquadrar a realidade à força dentro dela? Não existe sentido em retrucar simplesmente “ela não sabe que existe, mas está na estrutura da sociedade”, pois seria o mesmo que dizer que não podemos ver Papai Noel, mas ele existe. A resposta a isso só pode ser procurar a atividade real da classe operária na sociedade. “A prática é o critério da verdade”, afirmou Engels.
Existe alguma atividade real da classe operária na sociedade? Sim! Ela se chama movimento sindical! Os outros “movimentos sociais”, mesmo que muito mais radicalizados, não se organizam diretamente a partir das linhas de demarcação da classe trabalhadora na produção e circulação, por isso são realmente movimentos do “povo pobre” e dos setores oprimidos da população, mesmo que de outras classes e estratos. Isso não quer dizer que o movimento sindical seja perfeitamente delimitado. Por influência da ideologia dominante, o movimento sindical abarca setores não-proletários, como os funcionários do Estado (embora muitos deles cumpram funções socialmente necessárias) e até mesmo a polícia.
Dentro do movimento sindical existe uma luta constante envolvendo as relações de produção e a circulação das mercadorias na sociedade. Entretanto, ele só organiza os setores mais estáveis e mais bem-pagos da classe trabalhadora, até porque a grande massa da classe só consegue se organizar diretamente em situações pré-revolucionárias (o que não quer dizer que os comunistas não devam tentar fazer experiências de organização desses setores mesmo em situações não-revolucionárias, e sim que essas experiências necessariamente vão ser de menor escala). Mas o próprio fato dele se enraizar nas relações de trabalho já o torna a arena fundamental de qualquer organização revolucionária (mesmo que, por questões táticas, uma organização revolucionária possa atuar prioritariamente em outro setor, durante um período curto).
Como o movimento sindical expressa uma classe fundamental na sociedade, é ele que é capaz de gerar alternativas partidárias. Por exemplo, esse foi o caso do PT no Brasil. Muitas vezes, o movimento sindical criou partidos operários, mas nunca surgiram partidos com influência de massas dos outros “movimentos sociais”, como os sem-teto e estudantes. Mesmo os grandes partidos de base camponesa (como o Partido Comunista Chinês) foram criados por intelectuais, e não foram uma expressão política do próprio movimento sobre o qual se baseavam.
A classe operária não existe desde sempre
Já que a classe operária existe mesmo, e se expressa através do movimento sindical, como fica a questão mais importante, a da sua consciência política de classe? Em toda sociedade de classes, existe uma luta ideológica para definir quais são os seus componentes. Por exemplo, durante o Antigo Regime, o Estado escondia sob o nome de “Terceiro Estado” tanto a burguesia quanto os trabalhadores assalariados e servos. Na atual democracia dos ricos, se fala que todo mundo é cidadão. Já no fascismo, todos eram “o povo”.
Por isso, a conscientização de que se faz parte de uma classe, e de que ela deve lutar pelo poder para reconstruir a sociedade, só pode ser o resultado de um processo de luta de classes no plano teórico e ideológico. O exemplo da classe trabalhadora inglesa (a mais antiga do mundo) é marcante. O historiador marxista inglês E. P. Thompson, no seu livro fundamental A Formação da Classe Operária Inglesa, mostra em detalhes como essa classe chegou à consciência da sua existência e separação do restante da sociedade, ainda que não tenha formulado uma estratégia para lutar contra o Estado burguês. Para resumir bastante, podemos dizer que, desde o século XVIII, já existia um movimento sindical, mas que era organizado segundo o modelo das corporações medievais. Somente com a influência da Revolução Francesa surgiu um movimento popular, ao redor da Sociedade Londrina de Correspondência (1792), que foi o primeiro partido operário da história, lutando pela República.
A repressão ao movimento republicano levou a um racha entre o setor de classe média e o setor operário, que foi para a clandestinidade. Durante a clandestinidade, os trabalhadores se deram conta das divergências entre os seus interesses e os da classe média. Mas foi somente com o surgimento das primeiras teses pré-marxistas de William Thompson e Thomas Hodgskin, que afirmavam que todo o valor das mercadorias vem do trabalho, e que o capital não produz nada, e da fusão dessas teses com o movimento operário, que passou a existir claramente a ideia de que a classe operária é diferente de todos os outros setores oprimidos, e que ela pode criar outras relações de produção, instituindo o socialismo. O marco histórico disso foi o Trades Newspaper (Jornal das Categorias), editado a partir de 1825, e que unia todos os sindicatos de Londres, defendendo um programa da abolição do trabalho assalariado e substituição do capitalismo por cooperativas de trabalhadores.
O resto, como dizem, é história. A consciência de classe evoluiu em eventos históricos como a Greve dos Tecelões de Lion, em 1832, em que pela primeira vez se falou de governo operário (o hino dos operários dizia “teceremos a mortalha do velho mundo”). O inglês William Benbow, em 1833, foi o primeiro a defender a tática de greve geral, sob o nome de “Grande Feriado Nacional da Classe Operária”. Isso avançou até a experiência da Comuna de Paris em 1871, quando pela primeira vez na história colocou-se a necessidade de destruir o Estado burguês e iniciar a construção de um Estado Operário. Desde o começo do movimento operário, entretanto, várias formas de ideologias burguesas estiveram presentes na imensa maioria da classe, o que coloca até hoje a necessidade de um partido para defender o conteúdo revolucionário (portado da teoria marxista) da classe operária e de sua luta pelo poder, formulando uma estratégia apropriada. O avanço das ideologias burguesas se mostra de maneira marcante na nossa época, fazendo-nos regredir a concepções anteriores às do Trades Newspaper, em que muitos nem mais falam em classe operária.
O que fazer?
Com a destruição contra-revolucionária da URSS, o movimento voltou quase à estaca zero,. O nosso papel não é ficarmos com a boca cheia de dentes esperando a morte chegar e pregando o socialismo na internet e através simplesmente da venda de jornais, como fazem algumas correntes que se abstém da luta de classes na prática, como a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI) brasileira, a Liga Espartaquista (SL) americana com seus "filhotes", a Tendência Bolchevique Internacional (TBI) [presente nos EUA, Canadá, Nova Zelândia e Europa], e o Grupo Internacionalista (IG, cuja seção no Brasil é a LQB). organizativamente e também no campo da teoria.
Desde já, e dentro das condições mais difíceis da história do ponto de vista da regressão da consciência de classe, devemos tentar fundir novamente a teoria materialista da história (o marxismo), atualizada pela análise das mudanças do capitalismo contemporâneo, com o movimento real da classe trabalhadora, principalmente os sindicatos, onde uma tarefa central é combater as concepções reformistas.
A ferramenta ideal para isso são as frações comunistas, que tenham um programa político socialista, e que participem completamente da vida dos sindicatos (e outros movimentos) e das suas lutas. O partido comunista não será construído a partir do convencimento individual, e sim através da fusão com o setor mais radical do movimento operário. Para essa fusão, a nossa primeira tarefa deve ser ganhar os melhores militantes sindicais para uma concepção política revolucionária, tarefa essa que é baseada nas concepções e experiências de partidos de vanguarda e grupos de propaganda portados da política marxista revolucionária, formuladas e aplicadas por Lênin e Trotsky.
Ficou provado nos anais da história que somente estes modelos de organizações conseguiram de fato levar a classe trabalhadora e outros setores explorados pelo capital ao poder, destruindo o Estado e controlando a produção através da expropriação da burguesia (ainda que em geral as burocracias stalinistas usurpassem o poder político e a gestão da economia planificada, freiando o fluxo da revolução mundial, como se viu no século XX). Dessa forma, também está provado historicamente (para quem quiser estudar e sair do romantismo pequeno-burguês) que o ápice da capacidade de coordenação e integração dessas organizações revolucionárias como instrumentos dos trabalhadores nas lutas contra a máquina mundial do capital só pode se dar em uma organização a nível internacional.
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