Não vamos somente falar aqui do acirramento da luta de classes na
Venezuela. Tem outro assunto, a sabotagem econômica, que será inevitável em
qualquer processo de transição ao socialismo. E como é possível lidar com isso.
Na verdade, é preciso mencionar rapidinho alguns pontos básicos sobre o
que aconteceu na semana passada, pra explicar de que ponto vamos partir.
Pra começar, qualquer trabalhador venezuelano teria que ser contra os
atos da oposição de direita, convocados pelo
governador x, do Estado de x, do partido x. Essas mobilizações usam
demagogicamente as reivindicações imediatas dos trabalhadores pra tentar ganhar
as massas para a política golpista da direita. Nem precisa dizer que essa mesma
direita, quando esteve no governo, foi responsável por uma política econômica
de fome.
Mas também não apoiamos a repressão por parte do Estado a manifestações
de massas. Esse é um ponto que muitos parecem esquecer, porque caem na fantasia
perigosíssima de que o governo bolivariano[1]
é socialista.
Desde Hugo Chávez, o que realmente importa no Estado, as Forças Armadas,
permanecem as mesmas, com a sua cúpula ligada economicamente e ideologicamente
com a burguesia. A burguesia não foi expropriada nesse período de mais de
quinze anos. Portanto, o Estado continua burguês, 100% burguês. E qualquer
aumento do seu poder de repressão vai ser usado com toda a energia contra os trabalhadores
que estiverem em luta contra ele.
Dito isso, nós não somos idiotas e não jogamos todos os governos
burgueses no mesmo saco. A oposição, que se organiza pela MUD (Mesa da Unidade
Democrática), quer derrubar Nicolás Maduro para impor um governo completamente
escravizado pelos EUA. São golpistas que odeiam o povo, inclusive por serem
racistas. Por isso, a volta deles ao governo seria um retrocesso das pequenas
conquistas possíveis desde Chávez, como os programas sociais, a estatização de
alguns setores econômicos e avanços democráticos no Estado.
Não estamos mais na década de 1960, o que significa que os golpistas não
têm condições de apelar para um golpe militar aberto para derrubar Maduro. A
estratégia deles é combinar o desgaste eleitoral com mobilizações de massas,
sem descartar a possibilidade de um "golpe branco" pela via institucional. Nesse ponto, a estratégia deles é a mesma da direita
tradicional brasileira.
Partindo dessa análise, fica claro como é absurda a posição da LIT
(corrente internacional do PSTU), que disse que não existe nenhum risco de
golpe na Venezuela. Eles separam mecanicamente o ato do golpe, com movimentação
das forças armadas e no Congresso, das manifestações que servem pra preparar o
clima político para o golpe. O resultado disso é que, quando forem agir, vai
ser quando for tarde demais.
Mas o mais importante nessa situação é que esses atos de massas, por
mais direitistas que sejam, têm uma base na situação social da Venezuela. O
país está enfrentando uma grave crise econômica. Inclusive, foi essa crise, com
o aumento dos preços dos combustíveis, a inflação e o aumento da criminalidade
que tirou votos do PSUV e fez o Maduro ganhar por uma diferença tão pequena.
Em parte, essa crise é o resultado da política do governo, que não tem
como atacar as causas dos problemas sociais sem romper com o capitalismo. Mas
essa crise também é provocada pela sabotagem generalizada da economia pelo
empresariado.
Na verdade, as duas causas da crise são a mesma, como vamos ver mais à
frente.
Não estamos querendo dizer que o governo Maduro é revolucionário nem que
está fazendo uma transição para o socialismo. Uma transição para o socialismo,
como a experiência do século XX demonstrou, não pode acontecer sem a destruição
do Estado burguês, começando pelas suas Forças Armadas. E o socialismo é um
novo modo de produção, o que significa que as relações capitalistas têm que ser
progressivamente abolidas dentro dos locais de trabalho pelos trabalhadores
organizados. Essa é a base para uma verdadeira planificação da economia.
Mas, mesmo se o objetivo do governo for fazer algumas reformas a favor
do povo, a classe dominante não vai querer que mexam nos seus lucros. Por isso,
ela vai jogar pesado pra derrotar politicamente esse governo. E, tendo o controle
dos maiores monopólios econômicos e da maioria dos meios de comunicação, fazer
isso é muito fácil.
Um exemplo histórico foi o governo Allende (1970-1973) no Chile, que foi
a tentativa mais consistente de transição ao socialismo pela via eleitoral - e
que fracassou. A burguesia chilena fez exatamente o que a oposição está fazendo
na Venezuela. Tira os produtos dos mercados pra forçar a alta dos preços. A
inflação piora a vida dos trabalhadores e joga eles contra o governo.
No Chile, o alto nível da organização operária e popular fez com que
fossem criadas as Juntas de Abastecimento Popular (JAP), que se organizavam nos
bairros para descobrir se as empresas estavam travando a venda dos produtos.
Nas fábricas que estavam sendo mantidas em funcionamento parcial pra
desabastecer a economia, foram criados os Cordões Operários, até hoje o órgão
de poder operário mais avançado que surgiu na América Latina.
Essas soluções, criadas espontaneamente pelos trabalhadores, apontam
para a única solução possível contra a sabotagem econômica. Guerra é guerra, e
a única forma de diminuir a força da sabotagem é exercer uma ditadura sobre a
burguesia - a ditadura do proletariado, através dos seus organismos de luta.
Como o governo Maduro não pode dar esse passo,
ele só pode tentar combater a sabotagem tapando o Sol com a peneira.
Isso não quer dizer que é necessário expropriar imediatamente toda a
burguesia numa transição ao socialismo. Uma transição é exatamente o que o nome
diz: uma transição. Com os setores fundamentais da economia nas mãos do Estado
Operário, é possível ver em quais ramos é ou não aceitável a presença de
empresas privadas, ou se o Estado tem capacidade de administrar melhor do que
elas. A passagem de toda a produção para os comitês de trabalhadores é
progressiva, e também depende do amadurecimento político e técnico dos mesmos.
Como já falamos antes, não necessariamente uma futura revolução
socialista vai acontecer num país continental como a Rússia ou a China. Um país
pequeno vai precisar evitar o isolamento, e fazer acordos com países
capitalistas. Como Trotsky disse em A Revolução Permanente, o próprio grau de
socialização das forças produtivas vai depender do atraso do país.
É por isso que é necessária a independência política dos trabalhadores
em relação ao bolivarianismo. Não estamos mais no século XX, em que um governo
poderia se apoiar na existência da economia não-capitalista da União Soviética
e se radicalizar contra a burguesia. Hoje só podemos contar com as nossas
próprias forças, as dos movimentos sociais.
Essa independência tem que se estender não só aos sindicatos, movimentos
populares e estudantis, como à formação de um Partido Revolucionário dos
Trabalhadores, que possa lutar por um verdadeiro governo direto dos trabalhadores.
A polarização extrema da política venezuelana cria um clima muito difícil para
a formação de uma alternativa à esquerda do governo, mas esse é o único
caminho, agora que o bolivarianismo entrou no seu declínio final sem cumprir as
suas promessas. A base para a formação do partido está na diferenciação dentro dos movimentos de massas bolivarianos, assim como na fusão de pequenos grupos revolucionários que já existem.
Em todos os países, principalmente da América Latina, é um dever internacionalista organizar manifestações de solidariedade ao povo venezuelano, como forma de isolar politicamente os golpistas e propor uma alternativa independente para os trabalhadores.
[1] bolivariano
ou bolivarianista se refere a Simon Bolívar, líder de vários movimentos pela independência na América Latina
Nenhum comentário:
Postar um comentário