Reproduzimos aqui esse artigo do
blog do companheiro Tejo, militante trotskista do PCB. Nós fundimos as duas partes em uma, e reproduzimos aqui nosso comentário sobre uma crítica que ele faz ao CL.
Considerações sobre o PT - I
Temos necessidade de rótulos. E isso
não é ruim, na medida em que nos ajude na tarefa de compreender o mundo.
O problema é quando o rótulo se torna mais importante que a coisa
rotulada; é quando o significante não corresponde mais ao significado,
mas nos recusamos a disassociá-los. É aquele trecho do "Romeu e
Julieta" de Shakespeare: se "rosa", a flor, tivesse outro nome,
continuaria exalando o mesmo perfume. Poderíamos chamá-la de qualquer
outra forma. Mas se "rosa", o termo, se refere para nós àquela flor que
exala perfume, não podemos chamar assim aos, digamos, cactos. Que, mesmo
chamados de "rosas", continuarão verdes, ásperos e espinhosos.
Esses jogos terminológicos costumam
confundir muito na política, quando se dá ao nome mais importância que à
prática concreta. Olhem a sopa de letrinhas partidária brasileira:
"democracia", "popular", "social" etc. abundam nas siglas, sem que haja a
menor correlação fática entre o nome e a práxis. Daí se banaliza o conceito: muda-se o nome e, como a rosa de Shakespeare, o partido continuará sendo a mesma
coisa. O "Partido Democrático Popular" é o mesmo "Partido Social
Popular", que... em nada se diferencia do "Partido Popular da Democracia
Social". As combinações são infinitas.
O lulodilmismo também se insere na tradição de estelionato terminológico.
Por ser "Partido dos Trabalhadores", pensou-se (eu inclusive, em 2002)
que o PT governaria, oras, para os trabalhadores. Ledo engano: não foi
apenas o governo da reforma da previdência, da cooptação dos movimentos
sociais, da lei de falências pró-banqueiros, das PPP's, da manutenção
dos leilões do petróleo; foi também o governo em que o tema da
flexibilização dos direitos trabalhistas voltou à ordem do dia. Por um
lado uma tradição com raízes na classe operária, com afinidade com o
campo progressista internacional; por outro a prática fomentadora do
Capital -financeiro principalmente- e o reconhecimento, na figura de
Lula, por parte de Obama, de ser "O Cara". Eis armada a confusão em
corações e mentes. Causa estranheza, mas apenas para aqueles que não
compreendem o caráter do bonapartismo.
Durante algum tempo, fiquei inclinado a considerar acertada a análise do governo petista como sendo uma
frente popular. É como a Liga Bolchevique Internacionalista o define, por exemplo. Mas há problemas nessa caracterização. A
frente popular consiste no enfrentamento ao fascismo mediante a
conciliação
entre partidos operários e burgueses, formulação através de Dimitrov a
partir do VII Congresso da Internacional Comunista. Foi o giro do
stalinismo à direita, após a fase ultraesquerdista do
terceiro período:
The new perspective [i.e., a frente popular] called
for wide-ranging and frankly class collaborationist alliances. It
sought to defeat fascism by building electoral coalitions between
Communists, Social Democrats, and pro-capitalist liberals (...)
Apud Paul Le Blanc e Kunal Chattopadhyay, "Workers' United Front: Against Fascism and Reformism". É diferente portanto da frente única, alianças com organismos de massa reformistas e socialdemocratas, mas sempre no campo operário.
Caracterizar o lulodilmismo como uma
frente popular pressupõe, portanto, o colaboracionismo entre setores
operários e burgueses. Que a burguesia está no governo, não há dúvidas;
a dúvida surge quando é preciso apontar setores operários no governo.
Aceitemos que haja setores da classe trabalhadora na sua base de
sustentação, como a CUT e a CTB, por exemplo. Não importa agora se são
cooptados e/ou se representam a aristocracia sindical- veremos isso a
seguir. Basta que aceitemos, por ora, essas centrais como elementos
operários de apoio ao governo. Vejamos:
apoiar o governo não significa ter participação e, muito menos, ter influência nele.
Vale dizer: a frente popular, por ter como característica a colaboração
de classes, requer atuação ativa dos atores envolvidos; o papel
coadjuvante pode ser lançado a um lado ou outro, mas de modo cambiante,
conforme a situação concreta. Se os setores operários governistas vão a
reboque, não se pode falar em frente popular. É evidente que em toda e
qualquer frente popular a classe trabalhadora sairá prejudicada:
colaborar com a classe dominante jamais ajudará a classe dominada. Daí Trotsky dizer (
aqui):
Os teóricos da Frente
Popular não vão, no fundo, além da primeira regra da aritmética, a da
adição: a soma dos comunistas, dos socialistas, dos anarquistas e dos
liberais é superior a cada um dos termos desta soma. No entanto, a
aritmética não é suficiente neste caso. É necessário utilizar, no
mínimo, a mecânica: a lei do paralelogramo de forças verifica-se
inclusive na política. A resultante é, como se diz, tanto menor quanto
mais as forças divergem entre si. Quando os aliados políticos puxam em
direções opostas a resultante é igual a zero. O bloco dos diferentes
agrupamentos políticos da classe operária é absolutamente necessário
para resolver as tarefas comuns. Em determinadas circunstâncias
histórias, onde um bloco como este é capaz de arrastar para si as massas
pequeno-burguesas oprimidas cujos interesses são próximos dos do
proletariado, a força comum de tal bloco pode mostrar-se muito maior que
a resultante das forças que o constituem. Ao contrário, a aliança do
proletariado com a burguesia, cujos interesses, no momento atual, nas
questões fundamentais, formam um ângulo de 180 graus, não pode, via de
regra, mais que paralisar a força revolucionária do proletariado.
Mesmo derrotados de antemão, os
setores operários, em qualquer frente popular, participam em igualdade
(ou semiigualdade, que seja) formal. Por sua vez, o grau e o teor da
colaboração dependerão, como dito, da situação concreta. Parece-me,
então, que os setores operários da base de apoio ao governo têm papel
muito mais que secundário, sendo verdadeiros
figurantes nos rumos da vida política. Ao contrário, portanto, dos apadrinhados do BNDES, da FEBRABAN, Eike Batista
et caterva.
Quanto aos setores sociais do campo, também não recebem melhor
tratamento do lulodilmismo, vide a pouca influência do MST que, aliás,
não é de hoje tem demonstrado sinais de descontentamento com o governo.
Afinal, "
a reforma agrária não faz parte da pauta do governo Dilma, não faz parte da política do PT" ("Reforma Agrária parada: governo federal assentou apenas 6 mil famílias em 2011",
aqui).
Pode-se alegar, então, em socorro da
tese da frente popular, que há partidos operários na base de
sustentação. Mas também no viés puramente partidário a tese não se
sustenta- salvo se considerarmos PCdoB, PSB e PDT partidos operários.
Mas tanto em conteúdo programático (o PCdoB inclusive, que, apesar do
nome "comunista", defende em seus documentos um
nacionaldesenvolvimentismo rasteiro) quanto, principalmente, na prática,
são partidos
socialdemocratas, senão
social-liberais, que
é nada mais nada menos que o neoliberalismo mitigado. A
socialdemocracia é a ala esquerda do capitalismo, e isso significa ainda
ser capitalista. Há sectarismo em dizer isso? Em absoluto, basta que se
recorde Lênin em
Que fazer?:
(...) o
problema coloca-se exclusivamente assim: ideologia burguesa ou ideologia
socialista. Não há meio-termo (pois a humanidade não elaborou uma
"terceira" ideologia; e, além disso, em uma sociedade dilacerada pelos
antagonismos de classe não seria possível existir uma ideologia à margem
ou acima dessas classes). Por isso, toda diminuição da ideologia
socialista, todo distanciamento dela implica o fortalecimento da
ideologia burguesa.
O partido que não traz a radicalidade, mas, ao contrário, propõe melhorias e reformas é um partido do sistema. Como tal, não pode ser operário, sendo o sistema burguês.
Na sociedade dividida em classes, ficar em cima do muro é endossar a
classe dominante. Isso não quer dizer, naturalmente, que não haja
revolucionários sinceros ainda dentro de tais partidos. A
insistência na legenda, porém, é mostra -eu falo em revolucionários
sinceros- de descolamento da realidade, às raias da ingenuidade. Não
basta sinceridade se o método, a ferramenta, é ruim.
Há o caso das correntes
entristas.
Revolucionárias, ainda que em tese, disputando internamente a
organização reformista. Seria o caso da Esquerda Marxista (corrente
brasileira da IMT de Alan Woods) e a "O Trabalho", da qual aliás a EM é
dissidência, ambas dentro do PT. Mas não me parece decididamente o
entrismo trotskyano, e sim sua degeneração pablista. Em todo caso:
possuir algumas tendências revolucionárias não faz de um partido
revolucionário. Também aqui a influência das correntes revolucionárias/
operárias é mínimo, para que se pudesse dar outra caracterização ao PT.
Se não há participação da classe
trabalhadora, ou se há de forma meramente infinitesimal, não estamos
diante de uma frente popular. É um governo pura e simplesmente de
direita. E tal definição se estende ao partido que está à testa, o PT.
Considerá-lo um partido operário é absurdo; um "partido burguês
operário", ou "operário burguês", como chegou a defender o Coletivo
Lênin (
aqui),
é de uma teratologia gritante (tal como seria um "Partido Capitalista
Comunista" ou "Comunista Capitalista"). A melhor caracterização, penso
eu, é a da Liga Comunista:
partido burguês com influência de massas ("O caráter de classe do PT e a tarefa dos revolucionário",
aqui).
É evidente que a caracterização do PT como um partido burguês com influência de massas
é adequada. Jamais, desde sua origem, foi concebido como uma partido
socialista revolucionário; o que havia -e isso é coisa bem diferente-
eram tendências revolucionárias, mas jamais a ponto de
constituirem um todo homogêneo, e mesmo essas tendências eram
minoritárias. Lincoln Secco ("História do PT. 1978- 2010", Ateliê
Editorial), nesse sentido, destaca "que o PT surgiu de pelo menos seis fontes diversas",
a saber: o novo sindicalismo, Igreja Católica, egressos do MDB,
intelectuais liberais, organizações trotskystas (fazendo entrismo) e
remanescentes da luta armada. Esse balaio de gatos não poderia dar boa
coisa, culminando com a adesão pura e cabal à direita ao longo dos anos
90 com a ascensão do grupo de Lula e Dirceu e a submissão acrítica à
institucionalidade burguesa.
Ter influência de massas, porém, dá um plus (ou um "plus
a mais", sic, como dizia um professor meu, promotor de justiça) ao PT,
uma vantagem em relação aos demais partidos burgueses. Afinal, essa
influência de massas habilita o PT a implementar ataques à classe
trabalhadora que a direita tradicional (sem tal influência) não
conseguiria. A Reforma da Previdência de 2003 é só um exemplo. Com os
movimentos sociais manietados, encontra o caminho livre, ao contrário do
que se daria sob o demotucanato.
Essa influência sobre massas, portanto, dá ao PT um poder muito mais nocivo.
É como o falso amigo, em quem acreditamos poder confiar; o "amigo" vai
nos destruindo insidiosamente e, quando caímos na real, é tarde.
Diferentemente do inimigo direto, de quem desde já nada de bom
esperamos, e portanto contra o qual já estamos preparados.
Eleitoralmente, isso nos leva a uma pergunta retórica: sendo o "falso
amigo" PT, pelo exposto, mais prejudicial que a direita clássica, é
melhor a vitória desta àquele? Claro que não. Que percam ambos. Os
marxistas revolucionários devem combater tanto os inimigos quanto os
falsos amigos da classe trabalhadora. Nem um nem outro merecem a menor
confiança. Setores progressistas costumam considerar os candidatos
petistas como sendo o "mal menor", portanto devendo ser apoiados, "sem
ilusões" (sic), nos embates com o demotucanato. Já eu penso que
a
sociedade brasileira deve ultrapassar essa cultura deletéria de votar no
menos ruim, como se isso fosse melhorar a vida do povo. O voto útil
(...) é um instrumento deseducativo, rebaixa a política e tende a
consolidar projetos que já perderam há muito tempo o compromisso com as
transformações sociais.
("Nota política do PCB-SP sobre o segundo turno em São Paulo", 14/ 10/ 2012. Íntegra
aqui).
Avancemos: ter tal influência nas massas dá ao PT claro caráter bonapartista.
O bonapartismo clássico (ou
"cesarismo", mas levando em conta a impropriedade do termo, pois, na
Roma antiga, tratava-se da disputa entre as facções de cidadãos ricos
livres, deixando de fora as grandes massas da população) pode ser
caracterizado como um governo, em regra baseados nas forças armadas,
geralmente com um líder carismático, servindo como "árbitro" da luta de
classes -se colocando acima delas- em um momento de instabilidade
institucional. Analisando a França do início dos anos 30, Trotsky
("Bonapartism and Fascism",
aqui) coloca a questão, com grifos meus:
Thanks to
the relative equilibrium between the camp of counterrevolution which
attacks and the camp of the revolution which defends itself, thanks to
their temporary mutual neutralization, the axis of power has been raised
above the classes and above their parliamentary representation. It was
necessary to seek the head of the government outside of parliament and
“outside the parties.” The head of the government has called two
generals to his aid. This trinity has supported itself on its right and
its left by symmetrically arranged parliamentary hostages. The
government does not appear as an executive organ of the parliamentary
majority, but as a judge-arbiter between two camps in struggle.
A government which raises itself above the nation is not, however,
suspended in air. The true axis of the present government passes through
the police, the bureaucracy, the military clique. It is a
military-police dictatorship with which we are confronted, barely
concealed with the decorations of parliamentarism. But a government of the saber as the judge arbiter of the nation – that’s just what Bonapartism is.
(Ainda a propósito do conceito ver,
dentre outros, "O fenômeno da 'autonomização relativa do Estado' em
Trotsky e Gramsci: 'bonapartismo' e 'cesarismo'", de Felipe Demier,
aqui).
Ora: não é exatamente como árbitro da
luta de classes que o lulodilmismo se comporta? Lula recebe os sem-terra
e coloca bonézinho do MST. Fala in continenti ao agronegócio, e
diz que os usineiros são herois. E é aplaudido por ambas as plateias.
Serve a Deus e ao diabo, o lulodilmismo, uma vela em cada altar. Lincoln
Secco, na obra que cito acima, traz passagens emblemáticas. O grifo é
meu:
O Governo
também contornou a luta de classes ao internalizar os conflitos sociais
no aparelho de Estado, dando ministérios tanto aos representantes do
capital quanto (pela primeira vez) aos representantes do trabalho (p.206)
O Governo
Lula deu autonomia operacional ao Banco Central, seguindo a expectativa
dos investidores do mercado financeiro e de governos estrangeiros,
assim o lulismo pode ser definido como a forma política em que se
movimenta uma contraditória aliança de classes conquistada pelos valores da estabilidade social e monetária simultaneamente. (p.243)
No mesmo sentido, Antonio Carlos Mazzeo, do Comitê Central do PCB (
apud "O PT Como 'partido orgânico' da modernização capitalista brasileira - breves notas",
aqui):
O PT
transforma-se em Partido da Ordem (do capital) e Lula num líder
demagógico de conciliação e cooptação de classe e de caráter
bonapartista.
O lulodilmismo, enfim, como árbitro da luta de classes, acima delas, agradando a gregos e troianos. Lula "nunca foi de esquerda",
palavras do próprio, e repete orgulhoso que nunca os empresários
ganharam tanto quanto em seu governo; ao mesmo tempo fala à classe
trabalhadora e distribui medidas compensatórias à vontade.
Aliás: o "bolsa-família" aparece no "18 Brumário de Luís Bonaparte". Com a palavra, Marx:
Dinheiro
como dádiva e dinheiro como empréstimo, era com perspectivas como essas
que esperava atrair as massas. Donativos e empréstimos- resume-se nisso a
ciência financeira do lumpemproletariado, tanto de alto como de baixo
nível. Essas eram as únicas alavancas que Bonaparte sabia movimentar.
Nunca um pretendente especulou mais vulgarmente com a vulgaridade das
massas.
Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Das definições dadas acima, se
verifica, naturalmente, que o caso brasileiro não constitui um
bonapartismo "clássico". Por exemplo, não há que se falar em
instabilidade por luta de classes acirrada, tampouco se verifica uma
proeminência dos estratos militares. Isso não afasta, porém, o caráter
bonapartista do lulodilmismo. Quando muito, pode-se adotar a definição
de semibonapartista, em busca de maior exatidão. Mas fica a
crítica de Trotsky aos doutrinários, n'"A revolução traída", sobre como
nem sempre os fenômenos sociais têm contornos precisos.
O bonapartismo, como diz Trotsky,
representa sempre e em todas as épocas os exploradores. A
"imparcialidade" do árbitro é sempre ilusória; representa a interesses
bem definidos pois não pode, na sociedade de classes, existir nada que
seja de fato "acima" delas. O bonapartismo lulodilmista não é exceção: e
basta que se observe qual classe foi a maior beneficiada nos últimos
anos (lembrando que já estamos na metade final do governo de Dilma).
Quanto aos trabalhadores, migalhas e reformas pontuais.