Bem na luta
contra o inimigo principal
fui abatido
por meu inimigo secundário
não pelas costas, traiçoeiramente
como exigem seus inimigos principais
mas francamente, na posição
que há muito tempo ele ocupa
e de acordo
com suas intenções declaradas
de que eu não duvidava
e negligenciava
É por isso que a minha própria morte
não perturbou seu espírito
Meu único
alvo continuará
a ser lutar contra o inimigo principal
(Erich Fried)
Os
processos da Líbia, da Síria, do Irã tem dividido as correntes de
esquerda. De um lado, os que defendem a luta popular pela democracia,
colocando em segundo plano o fato de que os países imperialistas
intervêm e, em alguns casos, dirigem esses processos.
Do outro, os que colocam a necessidade de isolar os setores
proimperialistas acima até mesmo da existência de movimentos de massas
nos países em questão.
A polêmica entre esses grupos geralmente assume a forma babaca de "capituladores ao imperialismo x
puxa-sacos de
ditadores", justamente porque o que nenhum dos dois lados reconhece é que esse dilema é
criado pela mudança radical das coordenadas estratégicas desde
1979.
Essa situação ficou mais atual ainda (se é que isso
existe) depois dos protestos gigantes contra as embaixadas dos EUA, em
vários países islâmicos. O motivo foi o protesto contra o filme de baixo orçamento e qualidade menor ainda,
Inocência dos Muçulmanos, feito por idiotas de extrema-direita no melhor padrão Hermes & Renato (as cenas foram redubladas, os atores brancos passaram óleo pra ficarem com a pele mais escura dos árabes etc), que
ridiculariza o Islã e o seu Profeta, Muhammad.
Obviamente temos
que ser contra essa baixaria racista, islamofóbica e xenófoba. Mas os
protestos não são pra isso. Eles são contra as embaixadas dos EUA.
Parece que só são possíveis três interpretações: 1) ou eles estão
exigindo que os EUA censurem o filme, 2) ou eles acham que os EUA estão
numa cruzada contra o Islã (o que é uma bobagem, porque os EUA apoiam
várias correntes fundamentalistas para contrapor aos fundamentalistas
anti-EUA), 3) ou confundem o governo e o povo dos EUA.
De
qualquer
forma, os atos são reacionários, porque desviam a luta antiimperialista
para o terreno religioso da "guerra de civilizações". Esses setores são os mesmo que exigem a
censura de programas "antiislâmicos" na TV dos seus países.
Nós devemos lutar contra a islamofobia desse filme ridículo, mas defender a censura a esse filme seria o mesmo que voltar ao tempo das leis contra a blasfêmia. As pessoas devem poder criticar qualquer religião, mesmo que seja da forma imbecil dos palhaços que fizeram esse filme idiota.
Apoiar os fundamentalistas, porque eles queimam a bandeira dos EUA, como fazem muitos setores
da esquerda (caso do PSTU, da LER e da LC, que dizem que os protestos expressam distorcidamente a revolta contra o imperialismo), não só é idiotice, como é a maior expressão de indiferença
diantes dos trabalhadores oprimidos pelo fundamentalismo, principalmente
as mulheres!
Uma coisa é um movimento amplo, em que participam setores fundamentalistas (como foi a Revolução Iraniana de 1979). Nesse caso, realmente pode existir um conteúdo antiimperialista que é distorcido - justamente pelos fundamentalistas. Outra coisa muito diferente é quando uma organização fundamentalista organiza um ato com uma pauta diretamente religiosa (como "defender a honra do Profeta). Nesse caso, é óbvio que se trata de um ato religioso reacionário, e seria absurdo apoiá-lo.
Até os setores liberais proamericanos da Líbia foram contra o ato que matou o embaixador dos EUA, e mais ainda contra a existência de milícias fundamentalistas. E, nesse ponto, estavam agindo por um instinto de defesa contra um setor que quer impor a Charia, uma legislação baseada numa interpretação severa do Islã, que é incompatível com as menores liberdades individuais consagradas pela democracia burguesa, como os direitos iguais para as mulheres, a defesa da liberdade de expressão etc.
Isso nos traz ao objetivo da postagem: o que os
comunistas devem fazer quando quem luta contra o imperialismo é mais
reacionário que ele?
Marxismo, Liberalismo, Conservadorismo
Pra
começar, temos que
entender que o critério marxista não é "esquerda x direita". Ao
contrário, o marxismo usa um critério genético/histórico para avaliar as
correntes políticas, baseado na sua posição desde a revolução burguesa.
Quando
começa a
revolução francesa, surge uma corrente de defensores do Antigo Regime,
como De Maistre e Edmond Burke. Pela sua posição, eles são chamados de
contrarrevolucionários. Ideologicamente, são eles que criam o que hoje
chamamos de conservadorismo.
O
núcleo do pensamento
conservador é o organicismo, ou seja, a ideia de que a sociedade é formada por partes
que têm funções diferentes (como os órgãos de um corpo) e está acima das
partes. Então, os conservadores acham que a sociedade tem que ser preservada acima dos indivíduos.
Na prática, limitam os direitos individuais de acordo com a sua concepção de sociedade.
Por
isso, quando você vê alguém ser contra o casamento gay, a legalização
das drogas, defender o ensino religioso, é exatamente a concepção
conservadora. O
nazismo (que
cumpriu, no começo, o papel de uma contrarrevolução preventiva) se
intitulava uma
"revolução nacional e conservadora".
Os
liberais são a corrente que saiu vitoriosa das revoluções burguesas. No
começo, o liberalismo se reduzia à defesa da livre empresa e do
governo constitucional, que garantisse os direitos dos cidadãos.
Mas, depois de
mais de duzentos anos de lutas (que continuam até hoje, no Norte da
África, no Oriente
Médio e em vários outros países), a noção de liberdade foi se ampliando
até os direitos políticos, civis e sociais que temos hoje nas
democracias burguesas.
A base do liberalismo é a concepção
de uma sociedade
formada por indivíduos, e que a sociedade não é uma entidade superior - ao contrário,
ela deve ser organizada para a satisfação das necessidades dos indivíduos que a formam.
Viva o comunismo e a liberdade!
O marxismo critica as concepções liberais porque a liberdade no capitalismo é formal.
"O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de
que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte
realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o
homem seja um homem livre. (...) Não há dúvida que a emancipação política representa um grande progresso.
Embora não seja a última etapa da emancipação humana em geral, ela se
caracteriza como a derradeira etapa da emancipação humana dentro do
contexto do mundo atual. É óbvio que nos referimos à emancipação real, à
emancipação prática.(...) Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato
e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho
individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha
reconhecido e organizado suas "forces propres" como forças sociais
e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de
força política, somente então se processa a emancipação humana". (A Questão Judaica)
Isso
coloca a relação entre o marxismo e o liberalismo. Mesmo depois de
quase cem anos de tradição stalinista no movimento, fica claro pela
história do comunismo, que os marxistas defendem as liberdades
democráticas e a liberdade individual em geral contra os setores
conservadores. Nessa luta, o lado dos comunistas não é junto com as
pessoas que temem as "consequências sociais" da censura (inclusive à
pornografia), da restrição da liberdade sexual, do direito ao uso de
drogas etc, e sim junto com os liberais mais extremos e individualistas.
Ou
seja, a linha geral dos marxistas pode ser resumida no famoso verso da
canção antifascista Bandera Rossa: "Viva il Comunismo et la libertà!".
A URSS e o antiimperialismo
O
stalinismo destruiu o aspecto progressista do marxismo. Junto com a
sua política
de colaboração de classes, os regimes e partidos stalinistas
defenderam como norma para a sociedade "socialista" um estado policial,
onde as mais básicas liberdades políticas eram negadas com o argumento
de que eram "individualismo pequeno-burguês". Todo mundo sabe das
perseguições aos judeus, homossexuais, testemunhas de Jeová, minorias
nacionais etc nos "países socialistas". Ou seja, nesses regimes a
liberdade para os trabalhadores era muito menor que nas democracias
capitalistas.
O terror burocrático dos stalinistas foi a causa
principal não só dos trabalhadores dos países imperialistas na sua
maioria rejeitarem a luta contra o capitalismo (já que eles viam que nos países capitalistas avançados pelo menos existia liberdade de organização e expressão, que permitiam a organização como classe, o que era impossível na URSS), como também foi o que
criou a confusão ideológica que levou os movimentos do Leste Europeu em
1989 a lutarem contra o socialismo, que eles achavam que era a mesma
coisa que o stalinismo.
Apesar de tudo isso, nos países
semicoloniais a situação já era de ditadura, mas sem as
conquistas da revolução (pleno emprego, educação e saúde públicas etc).
Por isso, os militantes desses países se espelhavam na URSS na sua luta
contra o imperialismo. O prestígio da URSS depois da vitória contra o
nazismo também fez com que setores democráticos se aliassem à URSS,
inclusive dependendo do seu apoio econômico. Por isso, quando
organizações stalinistas usam nomes como "Frente Democrática",
"Democracia Popular" etc, não é simplesmente uma ironia macabra. É o
resultado das contradições reais da luta antiimperialista.
É
por isso que os setores que lutavam pela terra, pela independência
nacional, contra ditaduras apoiadas pelos EUA, pelas minorias nacionais
etc, eram pró-URSS e estavam à frente da luta antiimperialista.
Ainda
assim, a URSS apoiava regimes nacionalistas autoritários, como Nasser
no Egito, Kadafi na Líbia, Nkrumah em Gana etc, por causa da sua
política de revolução por etapas.
Foi essa a base que permitiu a mutação do antiimperialismo, que
aconteceu em 1978-1979.
O deslocamento do eixo antiimperialista
No final da década de 1970, três fatores internacionais mudaram todo o eixo antiimperialista.
O
primeiro foi a estagnação dos países onde a burguesia tinha sido
expropriada. Como Ernest Mandel e outros marxistas que analisaram as
economias planificadas disseram, se não houvesse mecanismos democráticos
para determinar as necessidades da produção e do consumo, já que não
existia mercado, seria impossível a economia planificada funcionar.
Assim, depois do período da industrialização da URSS e dos países mais
atrasados do Leste Europeu (década de 1950), começou um longo período de
estagnação, que durou até o fim dos regimes stalinistas.
Além de
acabar com a ilusão de que a URSS "marchava para o comunismo", que o
regime "socialista" tinha resolvido os problemas econômicos,
a crise
também levou a uma diminuição dos recursos que os soviéticos mandavam
para os movimentos de libertação nacional.
Em segundo lugar, a
guerra entre o Camboja e o Vietnã fez com que a grande maioria da
esquerda deixasse de defender o regime genocida de Pol Pot. O que passou
a ser discutido é que o regime do Khmer Vermelho foi uma coisa sem
precedentes, comparável somente com o nazismo. O regime massacrava
médicos, esvaziou as cidades, matava quem usava óculos (!!!) e
transformou o país inteiro num campo de trabalhos forçados. O discurso
que via os regimes stalinistas como um ponto de progresso perdia cada
vez mais credibilidade.
Essas condições permitiram que a
revolução iraniana contra o Xá proamericano, apesar da participação de
várias correntes comunistas, fosse hegemonizada pelos fundamentalistas,
que em poucos meses massacraram qualquer corrente de oposição e
instituíram um regime teocrático ditatorial que dura
até hoje. Desde então, a hegemonia das lutas contra as potências
imperialistas passou para organizações completamente reacionárias, que
desviam o conteúdo antiimperialista para um "choque de civilizações", em
que eles são a ala mais declaradamente reacionária e passadista.
O
que vemos, no final das contas, é que, em vários países, os setores que
são considerados "antiimperialistas" são antiiluministas, reacionários,
que querem que a sociedade volte para um estágio anterior ao
capitalismo. Por isso, muitos setores das sociedades em que existem
essas correntes veem os EUA e a Europa Ocidental como uma alternativa
progressista, enquanto boa parte da esquerda pede que se faça uma
aliança com esses restos da Idade Média. Muitas vezes, isso leva as correntes de esquerda a acusarem os setores secularistas e feministas desses países (ou seja, a esquerda de lá) de proimperialistas!
E então, o que fazer?
Em
primeiro lugar, não sermos idiotas etnocêntricos. As contradições de
classe também dividem os paises semicoloniais. Quando por exemplo, um
idiota diz que ser contra
o governo do Irã adotar pena de morte para adultério é favorecer o
imperialismo, temos que lembrar que não existe uma coisa homogênea
chamada "os iranianos", e sim que temos que nos apoiar nos setores da
sociedade iraniana que levantem demandas iluministas/democráticas que
estendam a liberdade individual. Ou seja, temos que fazer exatamente o
contrário do "multiculturalismo" idiota da esquerda que fica
glorificando o atraso dos países como se isso fosse antiimperialismo!
Também
temos, seguindo esse raciocínio, que colocar as necessidades reais da
luta em cada processo acima da estupidez geopolítica. A geopolítica é
uma ideologia (e pseudociência) quer trata os países e blocos de países
como um todo homogêneo, e analisa a realidade internacional como uma
disputa entre esses blocos. Mais uma vez, quando você é contra uma
revolta na Síria porque eles financiam a OLP, isso é escolher a
burocracia, em vez de ficar do lado do povo
em luta.
Pra fazer isso, é fundamental a gente entrar em contato
com as organizações marxistas ativas nesses países. É muito sério a
gente conhecer mais a Irmandade Muçulmana ou o Talibã do que, por
exemplo, a LGO (Liga de Esquerda Operária) da Tunísia, o LPP (Partido
Operário do Paquistão), o Lalit (Luta) das Ilhas Maurício, ou os
Socialistas Revolucionários do Egito, mesmo com todas as diferenças políticas que a gente tenha com eles. O contato com esses grupos pode
fazer evaporar em segundos qualquer ilusão nos setores que são muito
mais retratados na mídia. Isso faz parte da "descolonização" da
esquerda, porque muitas vezes as nossas referências são somente a
América Latina e a Europa.
Finalmente, é bom lembrar que frente
única antiimperialista se faz com setores antiimperialistas. Isso não
tem nada a ver com protestos organizados por pessoas que são contra os EUA porque são um país
"infiel". Seria a mesma coisa que ir pra um protesto do Tea Party contra o Barack
Obama porque ele é "socialista"! Quando a Internacional
Comunista defendeu a frente única antiimperialista, o tipo de movimento
que existia eram correntes nacionalistas secularistas, que hoje a gente
chamaria de nacionalistas burgueses, ou, no máximo, correntes islâmicas
ou de religiões locais liberais, como o Sarekat Islam (Indonésia) ou o
Cao Dai (Indochina). Totalmente diferentes das correntes sexistas,
xenófobas e antioperárias como o Talibã e a Al Qaeda.
Mesmo
quando é necessário estar no mesmo campo militar que os
fundamentalistas, como na luta contra uma invasão imperialista, temos
que ter clareza de que existe uma luta entre os setores que estão no
mesmo campo e que, mais cedo ou mais tarde (geralmente mais cedo) vai se
tornar mais importante que a luta contra o "inimigo comum". Isso exige
retomar as lições do PC chinês depois de ser massacrado pelos seus
"aliados" do Kuomitang: total independência política e organizativa (atos separados, se houver braço armado, também seja separado, organizações totalmente independentes), e
denúncia constante do "aliado" (coisa que o PCC não
fez a maior parte do tempo).
Se, por um lado, se abster de uma
luta real contra uma intervenção militar seria o fim de qualquer
organização revolucionária e, no final, isso serviria para fortalecer o
setor reacionário com uma imagem "antiimperialista", por outro lado, se
confundir e capitular diante de setores reacionários, patriarcais,
fundamentalistas e xenófobos torna qualquer organização imprestável para
a tarefa de se enraizar nos setores mais oprimidos, como as mulheres e
minorias nacionais, que são os setores que mais precisam de liberdade
de expressão e organização.