Uma herança da
escravidão
"A abolição vai quebrar o país, porque não existe dinheiro pra pagar salários para todos os escravos". "Nós já gastamos muito com comida e roupas para eles, a abolição vai falir as fazendas".
Esses são os argumentos que os senhores de engenho usavam um
pouco antes da abolição. A semelhança deles com a ladainha que temos ouvido depois
da
aprovação pelo Senado da PEC 66/2012, com 17 novos direitos trabalhistas para as empregadas
domésticas, igualando com os direitos dos demais trabalhadores, não deixa dúvidas.
O Brasil, como pais atrasado que é, preserva essa
instituição detestável, herança direta das mucamas da época da escravidão. São
as domésticas que vivem no seu trabalho, comem da comida dos patrões, dormem em
quartos de empregada minúsculos, precisam acordar de madrugada pra atender a
algum pedido de seus chefes ou cuidas das crianças deles, muitas vezes sofrem
assédio sexual dos patrões e seus filhos, se tornando uma parte subalterna da
família, e perdendo a sua liberdade de ir e vir e suas possibilidades de se
desenvolver como ser humano (estudar, viver com a sua família, ter o seu lazer
etc).
Quase todas as domésticas brasileiras são negras ou
nordestinas, e o fato delas viverem junto com as famílias de seus chefes é
usado com o maior cinismo do mundo como argumento de que eles não são racistas,
quando a situação é exatamente o contrário. Não faz muito tempo em que o
trabalho doméstico era o único refúgio para as jovens negras ou nordestinas que
vinham do interior sem nenhum treinamento profissional.
Nos países de capitalismo avançado, esse tipo de trabalho
foi desaparecendo, sendo substituído pelas diaristas, que prestam o serviço
doméstico (geralmente só um serviço, como cuida de crianças, passar, limpar a
casa etc, e não todos o serviços domésticos, como acontece com as mensalistas),
mas sem se vincularem de uma maneira quase servil a determinada família.
Porque o PT propôs essas reformas
O governo do PT com as grandes empresas aprofunda o
capitalismo no Brasil, e o estende em forma de neocolonialismo para o resto da
América Latina e para a África de língua portuguesa. Nessa fase de ascensão do
subimperialismo brasileiro, tem havido um aumento das oportunidades de emprego,
com uma minoria significativa indo para as mulheres. Isso fez com que muitas
trocasse o trabalho doméstico degradante por empregos no comércio, indústria,
serviços etc, que dão melhores salários e mais liberdade de movimentação.
Diferente da cegueira
de organizações que acham que o governo do PT é igual ao do PSDB, temos que ter
claro que Lula e Dilma, mesmo que governando para os banqueiros, o agronegócio
e os industriais, fizeram concessões para uma parte da classe trabalhadora,
para manter a sua sustentação popular. E é por isso que eles são atacados pelo
setor mais reacionário das classes dominantes brasileiras, mesmo que sejam
aceitos pelos EUA e demais potências imperialistas.
Essas concessões acontecem quase sempre para os setores da
classe trabalhadora que não tem organização sindical. Justamente porque esses
setores desorganizados são mais facilmente controláveis pelo governo. As
medidas como o Bolsa-Familia, ProJovem, Prouni etc, são uma forma de redistribuir
uma pequena parte da renda nacional sem tocar nas relações de exploração que
existem na sociedade. Ou seja, elas aliviam um pouco a situação do povo, mas
não são capazes de resolver os problemas estruturais que causam a pobreza – o
que só é possível com a luta pelo socialismo.
As empregadas domésticas servem perfeitamente para o projeto
do governo. Como o trabalho delas é individual, é quase impossível se
organizarem sindicalmente. E até mesmo cobrarem pra esses novos direitos saírem
do papel. Aliás, o grande problema da PEC é que ela não explica como a duração da jornada de trabalho vai ser fiscalizada, abrindo margem pra vários tipos de fraudes.
No caso das empregadas domésticas, o que o governo está
fazendo é simplesmente tratar elas como trabalhadoras normais, iguais a
quaisquer outros, e não como escravas. Isso mostra o máximo que o PT faz em
defesa dos trabalhadores. E por outro lado, mostra a visão escravista de uma
parte da classe dominante brasileira e das camadas médias que querem manter os
seus privilégios baseados na superexploração racista, que nem as tímidas
medidas do governo conseguem aceitar!
A classe média protesta contra o “absurdo” de ter que pagar
suas empregadas de acordo com a lei
Não poderia deixar de acontecer o espetáculo ridículo das
dondocas e dos representantes da “classe média” lamentando os “excessos” da
lei, dizendo que ela gera desemprego, porque quase ninguém vai ter como pagar
“tanto” pelas suas empregadas etc etc.
O caso mais imbecil é de um tal de Instituto Doméstica
Legal, que não por acaso é presidido por um homem branco que não tem muita cara
de que sabe arear panelas. Eles estão fazendo uma campanha exigindo que as
contribuições trabalhistas sejam mais baixas ou que sejam parcialmente pagas
pelo governo. Ou seja, que o governo use o nosso dinheiro pra pagar as
empregadas que eles dizem que não têm dinheiro pra pagar!
As camadas médias no Brasil têm sido, na grande maioria mas
com exceções importantes, uma base de toda reação. Foi ela que organizou a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que preparou o golpe. Foram os
estudantes de escolas particulares que mais fizeram atos contra as cotas.
Agora, são esses setores, que sempre se favoreceram com o racismo estrutural
que permitiu contratar empregadas com salários de fome e sem direito nenhum,
que estão vendo o seu mundo ameaçado pelo terrível medo de ter que passar as
próprias roupas.
Ser contra os novos direitos porque eles podem causar
desemprego é a mesma coisa que ser a favor
do trabalho infantil porque as crianças aumentam a renda familiar.
A nossa luta não deve ser pra empregar mais gente nessas condições aviltantes,
e sim para que se abram possibilidades de trabalho, com todos os direitos, que
não precisem dessa superexploração.
O trabalho doméstico é escravidão!
Não entender o caráter capitalista do governo do PT leva ao
apoio a ele, como faz o MST (não falamos das correntes do PT, porque elas apoiam
o governo simplesmente porque se corromperam com os cargos em que estão). Não
entender porque ele não é igual ao governo neoliberal do PSDB leva a não se
subestimar a oposição de direita, e muitas vezes fazer o mesmo discurso que
ela, como é o caso do PSTU e de alguns setores do PSOL.
Diante dessa luta, nós temos primeiro que nos posicionar
estrategicamente contra o racismo estrutural da sociedade brasileira, e
denunciar claramente o que significam as exigências de que os direitos das
domésticas sejam menores do que os dos outros trabalhadores. Isso tem que ser
feito às claras, porque debaixo dessa argumentação econômica sobre impostos
está o mesmo racismo que é onipresente no país.
Em segundo lugar, é preciso defender, contra todas as
dificuldades, a autoorganização das empregadas domésticas. A maioria dos
sindicatos de domésticas são controlados pelos patrões. É preciso criar oposições
classistas nesses sindicatos. Mesmo que seja impossível organizar a
categoria por local de trabalho, algumas táticas, como manifestações de rua e
organização por bairro podem permitir uma visibilidade pra essa luta.
Em segundo lugar, é preciso unificar a categorias das
trabalhadoras domésticas com o restante do movimento sindical e popular.
Muitas domésticas são sem-teto ou têm companheiro/as e parentes em outras
categorias organizadas. Essas categorias podem e devem se somar à luta pelos
direitos das domésticas, que vai favorecer a grande maioria das famílias
trabalhadoras..
A defesa das trabalhadoras domésticas é uma luta contra o
machismo e o racismo que estão na base da nossa sociedade, por isso, é uma
forma de mobilizar um dos setores mais explorados de todos para mudar a sua
vida cotidiana. O nosso objetivo estratégico, como falamos, não pode ser o apoio ao governo, e sim a luta por uma sociedade sem exploração, o socialismo. Como parte da luta pelo fim da exploração, temos que lutar pela socialização do trabalho doméstico, ou seja, que a limpeza, preparo de comida, lavagem de roupas etc, sejam feitas em escala industrial fora das casas , livrando as mulheres dessa merda de trabalho. Foi essa a experiência, apesar de todos os erros e da derrota posterior, das revoluções do século XX, como a russa e a chinesa.